Pular para o conteúdo principal

Que tal crescer de verdade?

Seu único luxo eram seus cigarros de marca, ninguém sabia como eles surgiam, mas já que ele dividia ninguém questionava. Conheci Humberto quando procurava por um quarto no apartamento, ele tinha acabado de entrar na federal, fazia psicologia e eu era de Engenharia Civil, porém logo voei para economia, meus pais não reclamaram pelo menos, dá emprego tudo igual.
            Eu estudava no mesmo turno que ele, só que ele estava dois semestres na frente, toda quarta-feira bebíamos cerveja antes de ir pra casa, era mais barato que nas sextas feiras e não tínhamos aulas quinta de manhã.
Humberto era preguiçoso, camarada, revolucionário, porém lazarento como somente ele conseguia. Era um caos, se eu quisesse levar uma garota para casa tinha que chegar duas horas mais cedo e às vezes chegava ao ponto de raspar com uma espátula a sujeira das paredes. A sorte dele eram as garotas que o chamavam pra ir pra casa dele, eu insistia em sustentar um resquício de cavalheirismo. Ele era mais inteligente. Não tínhamos muitos problemas financeiros, estávamos na fase da boemia, acho que todo mundo passa por quando começa a morar sozinho (dividir apartamento era sozinho, não importa o que digam).
            Para que não fiquem confusos, eu e Humberto nunca tivemos uma relação homo afetiva se quer. Eu me chamo Eduardo e gosto de garotas e cinema. Um dia tentamos nos beijar, mas foi impossível, mesmo estando bêbados. E por favor, não pensem que eu odeio gays só não é pra mim ok? E o mesmo vale para lésbicas, gosto da ideia de namorar uma garota e ela somente me namorar, podem chamar isso do que quiserem, é tendência humana imaginar o pior, mas eu realmente gosto de exclusividade. Agora eu não tenho a menor ideia de como ele tratava as garotas com que saia, se é que saia com alguma no sentido emocional. Imaginava-se como uma espécie de Sherlock Holmes comunista, agindo como se fosse um intelectual e nada mais, às vezes parecia que era realmente isso. Um homem que não ama (o que quebra totalmente a teoria boêmia, mas não vem ao caso).
            Vinte de Setembro foi o meu aniversário, o ano foi dois mil e dois, Chico Xavier morreu, o Brasil virou pentacampeão e eu fiz vinte e um anos, foi um dia ótimo, tive aula de direito constitucional, projeções sociais e era uma quarta feira, o happy hour era mais barato no bar. Por que estou dando nota desse ano em especifico? Passei seis aniversários na companhia do meu amigo e ele sete comigo. Sim, se vocês souberem interpretar poderão perceber que a nossa amizade terminou em algum momento, mas relaxem, não foi nada dramático.
            Às cinco da tarde daquela quarta-feira estávamos no bar eu e Humberto; um boteco simpático frequentado por muitos da universidade que tinha o nome de “Bortolloto”.
            - Feliz aniversário camarada! – Ele brada.  – Que seus sonhos se realizem e seus ideais não o traiam.
            - Lhe digo o mesmo companheiro. – Sim, eu também era comunista na época, ainda sou acho. – Um ano mais próximo da morte.
             - Ou mais distante.
 - Não tenho medo dela.
             - Você cresceu aprendendo que o céu era o limite. E quando teve a opção de largar a religião nunca pensou sobre. Não tem porque teme-la.
             - Temo só os limites da tua arrogância. Por que teme a morte? – Peço água de coco com rum de coco também e ele cerveja preta.
             - Eu tinha seis anos acho, minha bisavó tinha morrido há dois dias. Eu só tinha visto ela uma vez, mas tinha umas lembranças ótimas pelo que o meu pai falava, mas eu não me lembrava de muito dela. Minha mãe tinha dito que ela foi para um lugar melhor, e eu estava tranquilo. E a noite, meu pai estava vendo Ópera, Don Giovanni. E uma cena meio tétrica, onde ele se humilha e implora para uma estatua. E então morre. Fico assustado e pergunto pro meu pai o que foi e ele diz “ele morreu”.
             - Nossa não me impressione que você tenha medo. É um trauma e tanto.
             - Imagina? Descobrir que o purgatório é uma realidade repleta de ópera. Assim preferiria ir ao inferno.
            Rimos da piada e eu fico intrigado, porque pelo o que ele me falava os pais dele eram do nordeste, pessoas simples e ainda assim apreciam a ópera? Eu tenho uma característica de me abrir com pessoas que confio, ele não. A única coisa que eu sabia de sua família era que ele tinha passado por mil e umas dificuldades e que o fez ver que realmente a concentração de renda era a pior coisa do mundo. Uma situação misericordiosa. Mas daí esse sou eu sendo preconceituoso e estereotipando, explica muito se ele tiver acesso à cultura. Ele era brilhante. Arrogante, estranho, mas brilhante.  Acho que não faço jus ao meu amigo, estou retratando ele como somente mais um que entrou em uma onda revolucionária; por favor, entendam que foi ele quem lançou essa onda. Sinceramente nunca soube alguém que soube de tanto como ele, se eu disse que ele tentava ser Sherlock Holmes, ele realmente conseguia. Só não tinha muito talento artístico, mas se se dedicasse à medicina o mundo teria o melhor clínico-geral existente, se fosse matemático seria o melhor professor. Mas foi para humanas para ser o melhor pensador. Talvez eu exagere muito sobre ele, mas não tenho vergonha em assumir que até agora eu amo esse homem; foi um irmão desgraçadamente incrível.
E acho que fugi muito do tema. Escolhi esse diálogo especificamente para lhes explicar como era a mente dele e a minha, percebam como tudo parecia muito discursado e feito para livros. Era assim que funcionava; as conversas tinham que ser produtivas, sempre com um sentido filosófico. É dramático e chato (por falta de palavra que defina melhor), mas era assim que funcionava, impressionávamos e irritávamos os outros ao mesmo tempo, fingindo ser de uma elite que lutávamos para que morresse. Acho que era esse um dos maiores motivos de que passássemos tanto tempo juntos, éramos hipócritas, mas ele era mais. Ele gostava de ser o vilão e eu o cara bonzinho.
            Bebemos até cair (realmente, eu quebrei uma cadeira em um tropeção) e tivemos que pedir carona para um taxista que fumava maconha dentro do carro. Aquela fumaça e as doses de álcool não fizeram muito bem, porque acabamos os dois amanhecendo assistindo algum documentário sobre o desenvolvimento dos anfíbios. Foi um dia interessante, acabei indo para a aula de religião com ele, não sei se devia ter feito isso. Mas bem, comecei a concordar mais com Marx “A Religião é o ópio do povo”, mas não sei se realmente usei ópio naquele dia ou algo assim. Acho que foi a pior coisa que fizemos, mas em dois dias de ressaca já voltamos ao estado normal.
            Ele se formou dois meses depois daquela noite. Não foi orador de classe, mas ninguém esperava que ele fosse. Quem ganhou o título foi uma garota de quem já gostei muito durante o meu primeiro ano, não era linda somente bonita, mas era inteligente, esperta. Acho que foi o meu grande amor da universidade, superamos é claro, ela ficou muito bem, melhor do que eu. Terminamos por causa do companheiro de classe dela e melhor amigo meu. Ela disse que já estávamos comprometidos um com o outro, acho que era verdade no fim das contas. Somente fiquei mal quando terminei com ela, fiquei péssimo quando ele se formou. Morou comigo por mais dois meses só, daí eu fui para uma república para poder arcar com as contas. Foi divertido, fiz outros amigos, mas ainda me sentia traído. Pesquisava, consegui emprego rápido e aos poucos fui parando de pensar nele, e foi quando isso aconteceu que ele me chamou para um Chopp, e começamos a tomar bebidas fermentadas duas vezes por mês no mínimo. Em um ano, eu me formei também. Fui trabalhar de servidor público enquanto ele era professor. As coisas foram mudando com a idade, as conversas ficaram mais fluidas, menos forçadas. Ríamos mais, éramos mais sérios. Fingíamos que já éramos adultos.
             Eu me apaixonei. Em um belo dia, estava em São Paulo e conheci uma mulher. A primeira mulher (as outras eram apenas garotas) que eu amei, ela era sensacional. Fazia cinema, mas já era formada em história. Tinha dinheiro, pagava suas próprias contas, tinha seu próprio carro e seus pequenos luxos, que eram vários. Fumava os mesmos cigarros chiques que Humberto, mas era a única coisa que tinham em comum. Apresentei os dois, e os observei fumar, certa rivalidade no ar, ele sabia que isso significava que os tempos de universidade finalmente acabaram. Estava na hora dos dois crescerem. Eu comecei a morar com Juliana, e tínhamos dois gatos. Um siamês e um angorá. Era uma vida tranquila, Humberto não fazia mais parte da minha e nem eu da dele, mas estávamos bem. Dois mil e quatro e trocávamos cartas, ele tinha publicado seu mestrado e me convidou para ir para a casa dele, comemorar com a família. Não levei a Ju, ela não foi convidada e eu sabia que não daria certo.
            Foi naquele dia em que a nossa amizade morreu, não foi um rompimento ou algo dramático, foi só o que aconteceu depois da cena que vem. Ele morava fora da cidade, em uma área rural junto com Seu Gilberto e Dona Marília, seus pais. Acabei dormindo no carro e quando acordei estava na frente de uma Casa Grande em pleno século XXI. Olhei para o lado e vi um caminho que guiava à senzala. E então reparei nas roupas dele, a antiga jaqueta jeans surrada foi trocada por um bom blazer e uma camisa de marca. Guiou-me para dentro da casa e reconheci o pai dele da televisão, quando foi acusado por lavagem de dinheiro e posse ilegal de verbas. A mãe dele era simples tinha um sorriso triste no rosto e olhos brilhantes e decepcionados. Eu sabia que era para o filho que saiu do caminho, sem nem conhecer eles já fiz um retrato perfeito da família.
            - Odeia Concentração de renda?  - Pergunto na beira de uma lagoa que havia na propriedade.
            - Com a minha vida.

            E a vida seguiu. Nunca mais soube dele. Claro, ocasionalmente tomava uma cerveja e um sorriso triste vinha à tona, mas então era abraçado pela minha esposa e voltava a sorrir. Só esperava que ele tivesse conseguido crescer, para que os dois pudessem parar de fingir.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Porque vamos terminar a garrafa - Pillow Talk.

 - E se terminarmos? Você sabe que tem chance, uns oitenta e oito por cento, eu diria. Digo, eu provavelmente não sou o grande amor da sua vida.  - Então porque estamos juntos? Se tem tanta chance de terminarmos.  - Porque, nesse momento, agora, você é o amor da minha vida. Prefiro viver o presente, não gosto de "e se".

A rosa desabrochada

Apesar de tudo. De todas as mudanças de todos os sutiãs queimados; as mulheres permanecem com a mesma função. Manter um lar. Sorrir quando tudo estiver caindo, engolir as lágrimas e sorrir. Oferecer os ombros para carregar o peso que os homens em toda sua masculinidade e orgulho, se recusam a admitir que não agüentam. Será assim até o fim dos tempos. Os homens lutarão, se armarão, porém as mulheres os manterão. Mesmo que não os homens, mesmo que amem outro, elas continuarão lá. Com ou sem roupas intimas.