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31 de março de 1964

 "Foi muito rápido. Me lembro disso. Num dia estávamos todos tensos. No outro, meu pai e minha mãe me mandaram para a casa dos meus tios e fugiram. Itália, se não me engano. Me lembro de tudo. Não importa quantos anos passem. O homem simpático e com a farda do exército que foi até lá em casa. Me perguntou sobre tudo. O quê eu fazia. Presença dos meus pai no partido comunista. Nem sabia o quê era aquilo naquela idade. Não é certo uma criança de dez anos ter os pais foragidos e ser interrogada. Não é certo com qualquer um. Mas com dez anos, foi horrível.
 Cinco anos depois. Eles voltaram para casa. Me lembro de ter chorado. Muito. Eu sabia que eles voltaram por minha causa, alguém falou para eles que eu tinha sido tomada pelos militares. Em questão de dias, papai sumiu. Depois levaram mamãe e eu. Não chorei mais desde então. 
 Fiquei lá por somente duas semanas, não meses que nem meus pais. Claro, que quando saí fui para o partido. Se em somente catorze dias eu perdi toda a minha inocência e fé na humanidade e eles não, o PCdoB deve ter ajudado-os. Um pouco de ideologia não dói.
 Em seis meses reencontrei mamãe. Voltei para o mesmo local. Ela perdeu peso. Tinha olheiras. Chorava. Me abraçava e gritava. Eu não entendia o que ela dizia, mas tinha uma noção. "Não! Tirem ela daqui! É somente uma criança!". Nos dias seguintes descobri o que haviam feito para terem deixado-a daquele jeito. Sabe, a parte física é terrível. Mas o seu psicológico é o que realmente fica destroçado na tortura. Eu já tinha perdido a esperança de ver meu pai. Sei o que pensa, pareço fria quando falo isso, não é? Bem, quando você para para pensar que muitas outras pessoas passaram pelo o mesmo. E quando sua sensibilidade fica abalada, você simplesmente se esquece de ser sentimental. Não é de propósito. Mas essa era a real função da tortura, não somente te punir por ser contra o "governo", mas te fazer desistir de acreditar. Quase funcionou. Quase.
 Não sei quanto tempo passou. Mas saí de lá com mamãe. Fomos para a Itália. Ela ficou louca. Morreu com 42 anos. Não chorei na morte dela. 
 Quando eu fiz 27, o Brasil estava livre. Mas não das cicatrizes. Reencontrei meu pai. E então chorei. Sabe o quê é perder esperança? E então, em somente uma semana, recuperá-la? É algo lindo. Triste. Dolorido. Por favor, nunca passe por isso. E agora eu vejo. Vejo mesmo, que... Valeu a pena. Ter sido torturada. Ter perdido os sentidos. Desejo do fundo do meu coração; nunca ter visto mamãe chorar, ser açoitada. Violentada. Queria não ter visto meu país chorar. Não queria ter pensado que meu pai morreu. Mas uma coisa é certa, ter tido a ideologia foi o que me salvou, entende. Porque... Acreditar em algo é o que não mata o seu espírito. Não posso ter filhos. Não posso mais esquecer. Não consigo dormir de noite. Mas, posso ter esperança. Isso conta. E muito." 

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