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No suor de tinta se banham as palavras.

 Cinco horas foi quando consegui dormir. O suor já amarelando a gola da camisa. O café já esgotado e as olheiras negras. Me deito do seu lado e só deixo o manuscrito em cima do criado mudo. Você me acorda as onze da manhã, com o mesmo sorriso complacente de sempre; o olhar de quem olha para uma criança, a xícara de chá na mão e a outra me acariciando os cabelos. Sempre adorei esse seu sorriso.
 - Que horas você foi dormir, pequena? 
 - Desliguei o computador as cinco, acho. - Tomo um gole do chá, queimando a língua. - É do quê?
 - Chá preto com gengibre e mel.
 Vou bebericando a bebida enquanto você percorre os olhos pelos papéis. Nem chega a ler direito, mas o suficiente para saber a história. Você termina as páginas antes de eu terminar o chá. 
 - Se troque logo, querida. Temos onde ir. 
 Sim, eu sei. A sua premier.  Finalmente seus anos escrevendo por trocados valeram a pena. Um talento bruto, sendo reconhecido. 
 Te abraço e vou para o banho, você me acompanha. Me perfumo com seu perfume favorito, me visto com um vestido novo e então vamos para o hotel. Você sorrindo, lendo o jornal enquanto eu dirijo. Lendo um dos meus contos publicados, rindo dele. Bom saber que um conto irônico atinge sua função. É um alívio quando seu autor favorito te aprova. 
 Estaciono meu palio velho enquanto você vai entrando. Fotógrafos. Flashes. Perguntas. Você me espera e entra comigo. Entro na frente, e as fotos continuam, até que você passa pelas portas de vidro. Nos separamos quando seus amigos chegam, não conheço eles. Um sorri e me estende o braço.
 - Você é a noiva de Leonardo, certo?
 - Sim... - Dou um sorriso tímido.
 - Qual a sensação de namorar um astro? - Pergunta um outro, rindo bêbado.
 - Sim, um poeta. - Um terceiro bêbado. - Somente com palavras bonitas para conquistar uma dama bonita.
 Ignoro eles e tento te procurar, não que seja difícil. Afinal, a noite é tua. Vejo você conversando com o chefe do meu jornal, seu editor. E uma outra jornalista, você me vê, me dá um aceno e eu viro de costas enquanto corro para o banheiro.
 É o tempo de engolir uma lágrima. Me olho no espelho e vejo que a maquiagem não está borrada, somente o cabelo caindo. Solto ele e penteio. Respiro fundo e tento ignorar a inveja enquanto vou te ver.
 Começo a observar o hotel. O lustre ao estilo de Fantasma da Ópera, o quê já é o suficiente para que eu comece a cantar, murmurar uns versos. Virar de costas e ver que alguém me olha, ao invés de olhar à ti. Segura o jornal. O meu jornal.
 - Gosta da sessão de contos e crônicas? - Pergunto, sem motivo.
 - Demais. - Ele responde com um sorriso sarcástico.
 - Não piorou quando Leonardo saiu?
 - Pelo contrário. Por mais que ele escreva bem, prefiro você, Manoelle.
 - Me conhece? - Me esforço pra reconhecer o rosto.
 - E você a mim. Lembra? Festa na universidade?
 - Perdão, não me lembro nem do que bebi. Nem da festa.
 Rimos e conversamos, de repente o ambiente fica suportável. E fico somente feliz, feliz por você. Feliz por mim. E então você anuncia o discurso.
 - Foi com muito esforço que consegui fazer tudo isso, é claro, mas principalmente com muita ajuda. Acreditem ou não, mas sou péssimos com palavras. - Todos riem, é claro. - Sempre há uma pessoa para te ajudar e inspirar. E a minha, é um anjo da guarda. - E ele sorri pra mim. Aquele sorriso de todas as manhãs, junto com o chá. - Claro que café ajudou muito nesse meio tempo.
 E assim que termina. Uma salva de palmas e risadas. E eu tiro o meio tempo para refletir, é claro. Você fica famoso com poemas e romance, eu continuo publicando contos e divagações. Suas palavras fluem. Eu tenho que pensar. Você toma café, eu chá.
 - Sempre faz os outros rirem... - Eu digo, baixo. E então resolvo dançar. Otávio, quem mais tarde descubro o nome, me tira.
 Uma valsa suave e fria se percorre. Seus amigos me olhando e sussurrando um pouco alto demais. Não te encontro em nenhum lugar. Me desvaneço do abraço antes mesmo que a música acabe, saio a te procurar e vejo então, a tua musa. A mesma loira alta e escultural de seus textos, os olhos verdes e oblíquos. Provavelmente o famoso beijo viciante que você tanto descreveu. Provavelmente a mulher que anda nua pela casa. E é claro, você não está fazendo nada. Somente conversando, rindo, falando do talento dela, a mão na cintura. E nem se quer enrubesce ao me ver. Claro, você não está fazendo nada de errado. Nunca está. 

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