Pular para o conteúdo principal

Estrada Revolucionária

 Já estava planejado, os convidados chegariam às 17:30, logo antes do pôr do sol na orla, onde as cortinas translúcidas fariam sua função de impedir a cegueira mas não a beleza. Na sacada haveria um sofá de vime e um balde com gelo e vinho branco e a sala de jantar estaria decorada com crisântemos vermelhos e brancos enquanto haveria um samba tocando, uma homenagem a bossa nova da zona sul; contudo ainda faltavam dez horas para o acontecimento.
José já tinha levantado duas horas antes, então Marieta aproveitou os seus momentos sozinha antes da bagunça cotidiana. O quarto sempre se conservava branco e azul, mantendo algum efeito terapêutico calmante.
  - Parece um valium.
  Foi a reação do marido quando a decoração ficou pronta, alguns anos antes ela teria dado risada, mas décadas envelhecem o humor.
 - Valium e viagra.
 Ele não tinha ficado magoado com o comentário, essas leves humilhações já tinham virado um hábito dela.
 Lavou o rosto e molhou alguns fios de cabelo da moldura facial, tinha feito uma escova ontem a noite e teria que arruma-los de novo para a noite, mas nenhuma crise e prosseguiu para o café da manhã e no meio do caminho se surpreendeu a encontrar seu marido contemplando o mar na varanda.
 Um dos motivos do preço do apartamento ser astronômico era aquela vista, nos primeiros dois anos era a vista perfeita para longos e belos  jantares a dois junto de alguns cenários mais ardentes, depois as filhas adolescentes roubaram a sacada até que em algum momento ela teve apenas pombos como companhia.
 - O sol tá ardendo muito, vem pra dentro.
 - Passei protetor.
 - Mentiroso
 Deixa o xale pendurado na varanda, uma manobra perigosa dados aos ventos praianos.
 - Se lembra de quando eu me apaixonei por você?
 - Claro, eu ainda pintava, você tinha me chamado de Orozco
 - Você é José...
 - Só não sou mais um pintor.
 Não houve espaço para continuar o diálogo sem apontar dedos e culpar um ao outro.
A manhã seguiu ocupada, os peixes estavam limpos e os doces prontos, a mesa arrumada assim como o espaço para a banda. Só faltava fazer os bolinhos de peixe de dona Mari, cuja massa precisava descansar antes de ser frita.
- Andréia, já limpou o peixe? 
- Limpei sim, senhora.
- Ok, já deixei os temperos separados para a massa na geladeira. Você acerta sozinha né?
- Pode deixar, senhora. 
 Nisso as obrigações matinais estavam concluídas. Talvez devesse aproveitar o dia de sol e ir correr na orla, já estava farta daquelas mulheres da academia. Todas jovens, bonitas, fúteis. Não eram como ela era na juventude; os anos de amor livre, as consequências pós 68, sua temporada com José em Praga... 
 Encontrou o marido ainda na sacada, mesma posição, com duas bitucas apagadas no cinzeiro e um terceiro cigarro entre os lábios. 
 - Vou caminhar na praia. Vem comigo? 
 - Quer saber? - para a surpresa de sua esposa - vamos. 
 Atravessaram o apartamento até o quarto, José rapidamente colocou o tênis e sentou na cama, vendo Marieta escolher suas roupas com toda aquela calma metódica que lhe era característica. Suas mãos passeavam calmamente pela gaveta de leggings, escolhendo uma. Era tanto esforço para passar uma imagem, tanto esforço para ser perfeita que ele não sabia se achava engraçado, adorável ou repulsivo. Contudo nem reparou no momento em que o julgamento se esvaiu de seus pensamentos e apenas estava contemplando sua mulher. A cintura ainda fina, as pernas torneadas e os cabelos loiros presos num coque extremamente sofisticado para quem passou a manhã em casa. Ela sempre fora muito bonita, mas a idade a tinha tornado régia.
 - Vamos então?
 E saíram do apartamento e desceram o elevador em silêncio, meio constrangidos, meio sem vontade de conversar, mas querendo puxar assunto. Na saída do prédio, ao invés de ir para a Delfim Moreira, desceram em direção o clube de regatas. Vendo o movimento da rua, e os vários restaurantes em que tiveram diversos momentos.
 - Lembra? Antes aqui era uma loja de discos.
 - Uma loja de discos? A loja de discos, em que você fez todo aquele escândalo porque achou que tinha visto o Leonard Cohen... - Segurou o riso, se lembrando de toda a empolgação jovial de quando ela achou que tinham visto o músico. Poucas pessoas tinham ficado mais empolgadas com algo do que ela com o cantor.
 - Era extremamente parecido. Pare disso José. Você também achou que era.
 - Marieta... - Agora já não segurando as risadas - era um mendigo.
 - Eu sei que era! Agora sei pelo menos, mas vai falar que não era parecido...
 E com a morte do assunto, o silêncio retorna. Uma das vantagens do casamento é a verdadeira compreensão do silêncio, que ele não representa nem a ausência de assunto e nem o distanciamento necessariamente, mas sim apenas a não-necessidade do agrado mútuo constante. O grande problema é quando ele representa também esse distanciamento. Era o que acontecia para José.
 Ao passear por todas as memórias ele sentiu falta de querer estar perto dela. Já se foi o tempo em que ele se esforçava, e agora ele a admirava como se ela não fosse dele. Aquela mulher, bonita, curiosa, perceptiva com o mundo, não pertencia mais a ele. Era dona de si mesma, e não queria que ele pertencesse a ela mais também. 
"Por que você acha que o amor tem a ver com posse? Esse sentimento sofrido, dramático, não é amor. Amor é sereno, amor é pacífico, amor é pleno".
 Vinte anos depois dessa primeira conversa e ele ainda não tinha mudado de opinião. Era engraçado o quão tudo tinha que ser sofrido e dolorido para ele. Se José apenas pudesse ver que...
 E então, nesse pensamento, Marieta esticou a mão para seu marido. Terminaram o passeio ainda em silêncio, porém de mãos dadas. 
 Subiram para o número 810 e voltaram cada um a seus respectivos aposentos. O escritório de José era o antigo quarto de Laurinha, que agora virou seu próprio esconderijo. Uma parede vermelha, outra marrom, a paralela dessa amarela e apenas a da janela mantinha o branco característico do resto do apartamento. Tinha que se esforçar muito para reconhecer as cores daquelas paredes, repletas de estantes, entulhadas de livros; bibliografias, biografias e romances. Algumas pinturas antigas estavam enroladas, e um cavalete há muito não usava marcava o canto oposto de sua rede. 
 Entrou no banho gelado, não por preferir, mas porque sabia que Mari já estava no meio do seu no outro lado do corredor, nunca ousaria interferir na pressão do chuveiro dela. Ainda encharcado, deitou na rede e decidiu dormir até a hora da festa.
 A trilha sonora de Woody Allen serviria como música ambiente, os pratos com frios já estavam servidos e o os vinhos nos respectivos baldes de gelo. Andréia estava fritando os bolinhos agora e José ainda dormia. Nunca devia ter concordado com colocar aquela rede naquele escritório, sempre que dava ele dormia lá, se trancava naquele quarto abafado e não saía por nada. 
 Se olhou mais uma vez no espelho antes de ir acordá-lo. O macacão a vestia bem, e o salto dourado não se chamava mais atenção do que o colar de turquesa. Estava tudo certo a primeira vista. 
 - José, pelo amor de Deus! Já são seis horas! Sabe que o pessoal já vai chegar e nem ao menos para se dar a dignidade de se arrumar antes?!
 E ele sai do quarto dobrando a manga da camisa de linho. 
 - Tá bom assim?
 - Nem para colocar aqueles sapatos novos que te dei? Ficam ótimos com essa calça. 
 - Nah, os holofotes são seus hoje. 
 Faltavam os cinzeiros! Pegou os que trouxeram da viagem ao Marrocos e colocaram perto das janelas e na mesa de centro da sala, quando o interfone tocou. 
 Como já bem sabia fazer, enlaçou o braço na cintura de sua esposa e sorriu esperando o elevador. Os cumprimentos de sempre foram dados, as piadas que sempre funcionavam, as histórias velhas. Nesses momentos era que via o tanto que sua esposa tinha encontrado sua vocação. Em todo aquele meio de Mrs Dalloway, fazendo o status quo prevalecer mesmo na eleição de um presidente que poderiam atrapalhar os negócios. Ele tinha toda a noção de que não seria ele quem fecharia os negócios aquela noite...
 - Meu bem, já volto, vou pegar os bolinhos! - Ela o beija no rosto enquanto se desvencilha olhando para trás, calculadamente.
 E os elogios ao casal começam. "Como vocês mantém a química?" "Nem a minha amante me olha assim", e é claro:
 - Marieta do céu! Essa realmente deve ter sido sua maior criação de todos esses anos. - Uma amiga nova fala enquanto ataca a bandeja ainda fumegante. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Porque vamos terminar a garrafa - Pillow Talk.

 - E se terminarmos? Você sabe que tem chance, uns oitenta e oito por cento, eu diria. Digo, eu provavelmente não sou o grande amor da sua vida.  - Então porque estamos juntos? Se tem tanta chance de terminarmos.  - Porque, nesse momento, agora, você é o amor da minha vida. Prefiro viver o presente, não gosto de "e se".

A rosa desabrochada

Apesar de tudo. De todas as mudanças de todos os sutiãs queimados; as mulheres permanecem com a mesma função. Manter um lar. Sorrir quando tudo estiver caindo, engolir as lágrimas e sorrir. Oferecer os ombros para carregar o peso que os homens em toda sua masculinidade e orgulho, se recusam a admitir que não agüentam. Será assim até o fim dos tempos. Os homens lutarão, se armarão, porém as mulheres os manterão. Mesmo que não os homens, mesmo que amem outro, elas continuarão lá. Com ou sem roupas intimas.