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(debaixo de uma sacada)

 Não havia nada de especial naquela manhã. Estava nublada e garoava, toda a cidade parecia se perder no meio da neblina. Os topos dos prédios mais altos desapareciam naquela paisagem gélida, cujo qualquer suspense teria uma cena. Isso não impediu Anderson de comprar pela primeira vez em muito tempo um buquê de rosas. Ele não sentiu a vontade de comprar aquele buquê, estava cansado; havia dormido mal, se irritado mas foi. Era aniversário de casamento. 
Por mais que achasse aquela convenção social uma besteira (mais parecia comemorar o fato de que ainda estavam juntos) não conseguiu não sorrir ao se lembrar do começo. Das longas horas debatendo literatura, ou os vários momentos rindo enquanto fumavam após fazerem amor. 
 Mas agora ambos faziam cooper, ele achava aquela falsa intelectualidade supérflua e ela virou vaidosa.
 Não era que ele não gostava de Rosa, mulher bonita, conservada pelas horas de academia e vários mls de silicone e outras formas liquidas variadas da resina; conseguia se manter com a mesma beleza que tinha dez anos atrás quando em uma festa ela o beijou e somente na noite seguinte perguntou-lhe o nome. Ainda havia a beleza, e em algum lugar o espírito, mas o mesmo sempre acontece com as damas que ascendem na sociedade; a futilidade as vence. Ás vezes conseguem manter a intelectualidade, mas o esnobismo persiste.
 Ainda era cedo. Rosana não voltaria da academia antes das nove e disse que iria para o salão de beleza em seguida. Tinha muito tempo livre, e a última coisa que queria fazer era voltar para aquele apartamento; enorme mas ainda assim claustrofóbico. A sala inteira era branca com piso claro, somente a parede da televisão era laranja. Todos os anos a cor mudava, para combinar com a nova decoração. Não era por acidente que ela também mudava o tom do cabelo.Os duzentos metros quadrados do apartamento não diminuíam nem um pouco a sensação de claustrofobia. Valia a pena ainda dar uma volta.
 Comprou o jornal, um boné e se deu a andar. A cidade havia mudado muito nesses anos. Menos um lugar. Dificil de imaginar que ainda existiam lugares assim.
 Hesitante, com a mesma sensação de que ia abrir um álbum de fotografias com imagens que talvez fossem dolorosas, ele entrou.
 E não havia mudado, o barista, que devia ser filho do original, lia um livro de poesia, uma garota de cabelo curto afinava o saxofone para uma apresentação; no canto obscuro um homem chorava, e no lugar perto da janela uma falsa loira atraente manchava os cigarros de batom vermelho.
 - Olá juventude - Suspirou um pouco alto demais, e a tentativa de se passar despercebido falhou.
 Pediu um café com conhaque e procurou por um jornal.
 - Não é cedo demais para um batom desses?
 E por dois segundos jurava que conhecia aquela mulher... Mas não, não podia ser. Não com aquela perspicácia.
 - Novo século, nova vida, novo feminismo.
 - Na minha época era mais que o suficiente o amor livre.
 - Agora almejamos o amor próprio.
 O café chegou, ela pediu uma taça de vinho e não conversaram por muitos minutos.
 - Frequenta aqui?
 - De vez em quando, é bom para fugir do novo século. O senhor é iniciante não?
 - Já tive minha cota de boemia.
 Ela termina a taça antes dele terminar o café. Há algo de surpreendente naquela mulher, conseguiu vislumbrar um livro de Nabokov na bolsa (com certeza deixado de propósito).
 - Para quem são as flores?
 Ela tirou o xale que vestia, exibindo o nada discreto decote. Aqui é válido comentar que Anderson é um homem bonito. 
 - Minha esposa.
 E então como um gato ela sorri, o desafio foi aceito.
 Aos poucos o lugar foi perdendo o sabor, todo aquele ambiente cheirava à saudosismo, com uma classe forçada e um péssimo improviso de Jazz. Uma mistura de perfumes baratos e de cores quentes. E aquela loira representava tudo aquilo.
 Meia hora ele aguentou papo furado, sobre como a sociedade estava decadente e não se havia mais poesia em nada.
 - Ainda bem! - Responde o homem em seus cinquenta anos exasperado - Ninguém mais aguenta um mundo feito de mártires. Já tive minha cota de Bukowski nesses anos de vida.
 - Sabe, se não fosse por essa frase, eu teria lhe dado meu telefone e te pagaria um quarto de hotel.
 Nem questionou o fato de que normalmente o homem deveria pagar a amante, afinal, feminismo. 
 - Sou casado meu bem. Lembra?
 - Não impediu outros antes de você. - Apagou o cigarro na taça vazia. - Vamos? 
 E deixou a conta em cima da mesa. Continuaram conversando, dessa vez mais por hábito do que pela real vontade de nosso protagonista. O esnobismo e narcisismo da mulher haviam superado todo e qualquer charme que ela adquiriu nos instantes iniciais. Quem diria que a primeira impressão é realmente errada.
 - E sobre sua esposa, rosas são muito previsíveis. Se eu fosse você comprava bromélias.
 E chegam no ponto de ônibus. Ela deixa um bilhete no bolso da calça dele. Oito dígitos formando um telefone, uma marca de batom e um "surpreenda-me". E ele o fez, nunca mais viu a mulher na rua. 
 Caminhou com calma até chegar em casa o sol havia saído e a manhã pego algum gosto. Quem sabe poderiam ir para um restaurante, ou ele compraria um quadro de Monet para ela, Rosana sempre amou-o. Na realidade ela sempre adorou os impressionistas e o abstratismo. Anderson nunca havia gostado. Sempre achou forçado demais tentar interpretar aquilo tudo.
 E a manhã virou linda quando ele chegou em casa. A esposa não o ouviu entrar. Estava de costas, com uma bata decotada atrás, e aqueles cachos bem cuidados poderiam muito bem ser nuvens douradas; entrou com todo o cuidado e cautela do mundo. Somente observou na mesa um vaso de Cravos fúnebres recém comprados.
 - Sempre preferi as flores perfumadas. Você sabe disso. 

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