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A nostalgia do que não li

 Uma criança linda se agarrava ao cachorro de pelúcia como se sua vida dependesse disso. Todos os seus movimentos eram em torno daquele braço direito que imitava uma asa com o boneco dentro. Sua mãe seguia, segurando-a pela touquinha do moletom que vestia com a mesma naturalidade de quem é levado por um cachorro travesso que avista um ciclista passando. Claro que com muito mais cuidado.
Vejo Laura se envolvendo com aquele momento, deixando que toda a subjetividade daquilo tudo, com suas mil e uma metáforas fosse absorvida, e eu fiquei lá esperando a frase de efeito que quebraria o silêncio.
 - É engraçado como cigarros são considerados vícios, mas essas obsessões infantis não.
 - Crianças lá podem discernir o que é vício ou não?
 - E uma garota de treze anos revoltada com a vida pode? É o mesmo tipo de critério completamente arbitrário que determina para quem a culpa vai durante um encontro, ou pior, abuso sexual. O tipo de dependência que aquele menino tem daquele cachorrinho é tão grande quanto, se não pior, o tipo de dependência que eu tenho dessa caixinha de quase dez reais ou você dos seus antidepressivos. Só que o da criança é bonitinho e romantizado. 
 - Crianças são bonitinhas e romantizadas, qual tua solução? Romantizar cigarros e antidepressivos? Já são também.
 - Ah, acho que tu como pai não deveria perpetuar esse tipo de comportamento, e outros e outras também. 
 Deixo o assunto morrer por não ter paciência para mais um debate anti-natalista nessa altura do campeonato, queria compartilhar da noção meio niilista de auto importância pra humanidade que ela tem, para aceitar esse argumento de "o Homem foi a pior coisa que apareceu na Terra". Seria um pouco mais fácil ter esse grau de auto importância. 
 - Vai ter alguma instituição que em algum dia tu não vais discutir ou negar?
 - Provavelmente quando eu envelhecer, até lá, meu caro Pedro, me mantenho nisso tudo. Ainda tenho alguns privilégios dos quais abuso. 
 - E as que tu se vale? 
 - Crítico elas igual, mas me deixa ser minimamente oportunista
 E era nisso que a gente se desencontrava. O individualismo radical dela, e meu comunitarismo extremo. Era como o nosso apartamento no Centro Cívico. Seus quadros de Godard, livros de fotografia e suculentas espalhadas pela casa contrastando com meus livros de capa surrada, roupas largadas e o boêmio pitoresco que sempre me esforcei tanto para manter. 
"É com o mendigo mesmo que vai morar junto?" 
 Dei tanta risada quando ouvi suas amigas me chamando assim, tanto porque evidenciava aquele preconceito de classe média, quanto por saber que o estereótipo que me esforcei pra manter funcionou, assim como os dela. Desde o uniforme de sapatos de salto com blusas cropped e jaquetas um pouco maiores do que ela, até as tentativas de solidificar relações líquidas.
Houve um episódio muito marcante do nosso namoro, que ainda não entendo como passamos por aquilo. Caça às memórias, ela chamou. Um jogo bizarro que basicamente consistia de eu ir para a casa de seus ex e buscar o que ela tinha esquecido; um par de brincos com Juliano, uma regata com Renata, três livros com Luiz, dois Posters de filmes com Bárbara, praticamente uma muda de roupas no apartamento de Oswaldo, uma pulseira mexicana com Victor. Em cada casa me submetia a um tipo de constrangimento diferente, desde me chamarem prum tipo bizarro de orgia até um cidadão chorando me convidando pra encher a cara com ele, contudo descobri muito sobre ela, desde sua necessidade constante de ser algum tipo de protagonista na vida alheia, até quem foi importante e quem não foi em tua vida. Foi quando entrei em termos que jamais descobriria o quão importante sou/fui pra ela até terminarmos, e ver quais tesouros ela deixou comigo. 
 Entramos no apartamento e cada um foi pra seu respectivo quarto. A rotina antes de dormir se iniciava, ela estudava suas leis e códigos penais e eu aprendia uma moda nova no violão e faria um post anônimo no blog, então escovaríamos os dentes e começaríamos a nos devorar com o gosto de pasta ainda fresco na boca. Todo esse processo sempre me exigiu um preparo psicológico desde que começamos a morar juntos. Tanto por adivinhar o que ela vestiria no pequeno espaço de sedução que haveríamos até o sexo, quanto pelo esforço de não deixar aquilo tudo cair naquela mesmice bizarra. Sempre tive medo das alternativas que ela traria para o tédio. 
 Aerosmith começa a tocar e essa é a minha deixa. Eu de calça e ela de camisa, a nossa bizarra dança se inicia. Os cabelos ruivos presos num coque meio solto calculadamente preso daquela maneira e eu pitando o palheiro encostado na porta. Sirvo o vinho, bebemos e a dança começa, jamais abandonando a competição jamais declarada entre nós. Todas as rixas de quem sabe mais, ou de quem dá a última palavra, eram ignoradas nesse momento de quem cede primeiro à sede.
 Nos amamos como dois pagãos, ela dorme na minha cama e eu na rede da lavanderia. Acordo com uma notificação do celular me avisando da manifestação marcada para começar nessa madrugada. 
 Uniforme negro vestido, garrafa de vinagre na mochila e marcho sozinho para a universidade. Tudo muito silencioso e muito tenso, invadimos o prédio, roubamos as gravações que nos deixavam de reféns, fugimos dos guardinhas e volto pra casa três horas depois de ter amanhecido. 
 E outro ritual começa, eu no meu banho e ela me banhando. Cantando as cantigas que me acalmam de toda a paranoia. Como eu queria explicar pra ela o momento em que estávamos, a delicadeza de toda a violência que estava prestes a brotar. Contudo, ser honesto implicaria em duas hipóteses: a) ela aceita, e participa desse lado da minha vida, e continuamos como companheiros de luta ou b) permanece distante dessa faceta tão importante de mim, e eventualmente terminamos com aquele gosto agridoce de "tudo que podíamos ser". 
 Quinze horas passadas desde nosso diálogo ela pergunta:
 - Contra o pai de quem se revoltou hoje?

 - O teu, dessa vez. - Falo numa tentativa de honestidade. 
 - Meu anjo, até quando vai roubar narrativas e lutas que não são suas?

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