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O amargo da tua boca ainda supera o doce da minha

 Pela primeira vez vi ela acordar. O emaranhado dos cabelos emoldurava o amassado da cara de ressaca. O ronco baixinho de criança e os seios roçando a face. No começo da noite ela tinha se encolhido no meu colo, pelas três da manhã a cabeça estava no meu colo, e agora já estava mais distante, deitada sobre o próprio braço. Abriu os olhos e me cumprimentou com um beijo de boca amarga.
 - Quis uma namorada e arranjou outra criança. - Ela ri e vai para o meu banheiro, já sabendo onde fica a pasta de dentes, no meio do trajeto rouba a minha camisa do chão.
 Fecho os olhos de novo, ainda era muito cedo para acordar. Não que isso fosse impedi-lá. Me morde com a boca de hortelã.
 - Você sabe não é? Minha sede de ti é diretamente ligada à bebedeira de ontem a noite. - Prometo nunca mais deixá-lá sóbria se fosse o caso.
 E o dia inteiro passa num bocejo. Ela me dá uma rotina de doze horas baseada em músicas, promessas que não sei se serão cumpridas e a vida re-começa no dia seguinte.
 Deixo um recado na caixa de mensagens e ligo algumas vezes, depois de três dias decido ir à livraria em que ela trabalha. Era o dia de folga.
 - Alô?
 - Ah, que bom que te encontrei em casa. Afim de um café?
 E no dia seguinte acordo sozinho, com um bilhete explicando a situação de pressa da manhã. E a minha semana se segue mais uma vez agoniada. E da próxima vez vira um mês.
 Nem se quer tive condições para chorar, ela só me tirou a alternativa de uma felicidade em um futuro próximo assim como arrancou quaisquer esperanças que eu tivesse de virar um mártir e sofrer por ela. Passei umas duas semanas caminhando sozinho de noite, como se em alguma esquina desvairada eu fosse encontrar a resposta, sentei nos botecos esperando que algum Coronel velho fosse me dar algum conselho que mudasse a minha vida e me fizesse escrever um livro, mas isso nunca aconteceu, mas ela estava no meio fio no lado oposto do meu prédio em uma quinta-feira à noite.
 - Só pare. Foi ótimo, mas não estrague a memória que fiz. Vou ser arrogante em dizer que te dei momentos maravilhosos, por favor, só os use para sorrir de vez em quando mas não procure por mais.
 - E você vai ficar o quê? Se remoendo e aproveitando a dor?
 - Não, aproveitar a melhor manhã que tive e não vou jogá-la fora por uma rotina insossa.
 - Ah, você é uma daquelas leitoras de Nietzsche.
 - Pior, Tolstoi. E Nietzsche também, claro.
 - Quando você se resolver na vida, será que vai tentar me procurar?
 - Provavelmente sim, como eu disse, foi uma ótima manhã.
 E ela se aproxima. Por dois segundos espero um beijo, mas depois decido que me contentaria com um abraço. Um aperto de mão firme e um sorriso querido foram a minha despedida, e caminho sereno até em casa. Talvez aquilo fosse a vida mesmo, despedidas serenas. Resolvi deixar esse drama de sofrer por amor para os intelectuais, precisam mais do que eu.
 Me deitei naquela cama, já tinha trocado os lençóis duas vezes desde a última vez que ela veio, queria que não o tivesse. Queria guardar a memória daquele amor que nunca se desenvolveu, somente para poupar o trabalho de perseguir outro.

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