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Em Curitiba, choveu num funeral.

 O doutor falou dos estágios da doença. Bah, baboseira maior não há. Uma maneira bonita de dizer se vamos demorar pra morrer ou se vai ser rápido pra bater as botas. Sabe, acho que é HIV, IVH IDH, o nome do troço que tenho. Me disseram que faz tempo isso, mas sei lá, nunca notei nada não. Lembro do doutor cheio de cerimônia antes de me contar.
 - Ué? Qual o problema? Remédio caro?
 - Sem cura.
 E esse era o porque da cerimônia. É aquela coisa né, todos nós morremos, a questão é quando. 
 E eis que me vejo numa tal terapia de grupo aqui no Ahú, e olha só que eu me surpreendi. O Bóris e o Kiko estavam lá. O Bóris até que chorou, falando que não queria morrer na cadeia. Já por mim, homem que é homem não chora, ainda mais se for do sul. 


 - O vírus da Imunodeficiência Humana é um retrovírus que causa a falência do sistema imunitário, degenerando-o. Transmitido pela troca de fluídos, normalmente por relações sexuais sem proteção e o compartilhamento de seringas e agulhas.
 Eu poderia falar que é preconceito, mas é estatística; AIDS é doença de pobre. Quinze anos rondando o Brasil entregando preservativo e falando sobre o risco de dividir a agulha na hora de se picar (e sobre os danos da heroína, por que não?), mas nenhum lugar foi tão desesperador quanto aqui. 
 A única coisa que eu sei é que os banhos ficaram mais tranquilos. Os caras se contentaram em ficar só na mão para não pegar a doença. 
 - A AIDS é a doença causada pelo vírus, como ela diminui as defesas naturais do corpo, deixa todas as outras doenças mais violentas e propícias à acontecer.
 - Ô doutô... - Me interrompe um pobre coitado - O senhor ta querendo dizer que eu posso morrer de gripe? 
 Ele espirra e o meu silêncio me condena. Chora o pobre coitado. 

 Pasmaceira! Retro sei-lá o que, sistema imunitário. Ele realmente tinha a ilusão de que a gente ia entender pelo menos metade daquela porquera? Bem, terapia em grupo não funcionou, então me mandaram prum psicologo. Sabe, vi um desses quando me prenderam. Pra ver se eu era louco, tinha raiva ou algo assim. Tipo cachorro mesmo, sabe?
 Era bonita a sala do médico. Tinha cheiro de perfume e café fresco. Ele demorou pra chegar, mas me diga um médico que não se atrasa que eu te digo um nego da Vila que não conhece a Casa Rosa.
 - Boa tarde.
 - Tarde.
 Me encara com um sorriso calmo e me serve de café.
 - Açúcar?
 - Puro.
 Que saudades desgraçadas de tomar café.
 - E então Antô..
 - Tico.
 - Tico, Por que está aqui?
 - Aparentemente estou morrendo. Melhor fazer isso num sofá do que na cela.
 - Tem medo da morte?
 - Nunca pensei sobre e prefiro continuar assim. 

 Antônio Mateus da Silva, trinta e sete anos, condenado por vinte e cinco por estupro. Respostas e comportamento indicam impaciência e medo. Um dos casos mais desesperadores que temos. Menos de um mês de vida agora. 
 - Sabe como pegou a doença?
 - Menor ideia. Me picando, com mulher, aqui na prisão?
 - O senhor foi estuprado?
 - Eu que estuprei. Mas foi só aqui. Sou inocente do que me julgaram.
 - Viciado em Heroína?
 - Larguei na prisão, porque né.
 Fiz os exames de praxe. Não possuía nenhum distúrbio, porém tinha um furúnculo na perna que infeccionava já. Lembram do que eu disse sobre um mês? Faça disso quinze dias.

 E a desgraça da perna que não parava de doer. Mas eu não parava de visitar o Dr. Carlos, ficava três horas por dia lá, ele me trazia jornal, cigarro e pipoca. Me perguntava sobre a minha vida e a minha família mas eu logo desbaratinava. Acredita que acabei simpatizando com o sujeito? Gremista, casado, confiável.
 - Doutor, minha perna ta muito feia. Eu to pra morrer logo né?
 Ele não respondeu. Era simpático, mas era um covarde. 
 - Posso te pedir um favor?
 - Pode Tico.
 - Minha mãe vai me fazer um enterro bonito ela me disse. Gostaria que o senhor fosse.
 Não fiz ele prometer, sabia que ele não iria.

 Onze de agosto de 1989, morre Tico e eu vou para a cela dele recolher seus pertences. Umas revistas de sacanagem e uma seringa com pó, o vadio mentiu sobre ter deixado de ser picar. Eu que não culparia ele. Derreto a droga e injeto no meu braço com a agulha do rapaz. Meio anestesiado ainda falo com o gerente do presídio e pego o nome do meu novo paciente. Nem preciso dizer que realmente não fui ao enterro.

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