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Sem Açúcar, Sem Afeto.

 E acorda o velho militar. Somente mais um aposentado cínico com o mundo, ex-coronel e respeitado.   Desde seus tempos como cabo acordava cedo, um hábito em que quase todas suas filhas tinham, menos a mais velha. 
 Mônica era uma mulher já, seus vinte e dois anos, quase formada e eleita oradora de classe. Inteligente, beleza clássica de cabelos castanhos retos e bem-mantidos (hábito do pai). 
 Helena tinha acabado de passar no vestibular e viajava. Estava em Paris com a mãe. Sonhava em ser arquiteta e fotógrafa. Com certeza era a mais bonita de todas as filhas, pintava o cabelo, passava maquiagem, mas sem tudo isso era esguia e delicada. Maravilhosa.
 E havia Denise, apenas um ano mais nova que Helena. Cinco mais nova que Mônica. Trinta mais nova que sua mãe. Tinha os cabelos arrepiados do pai, a tendência a engordar da mãe e um talento que ninguém viu. Naquela família, linda onde todos se adoravam e eram extraordinários em algo, ela era em tudo e nada. Não se aprofundava em política como uma das irmãs ou em artes como a outra. Não compunha e tocava com a mãe, esta somente pensava. 
 E nessa rotina feliz e tranqüila, após anos todos se esforçando, Helena voltava para casa para a formatura de sua irmã. Alexandre, conhecido como Coronel Bandeiras pela primeira vez em mais de duas décadas não brigou com sua primogênita pelo seu sono. Nesse dia em especifico ele deixou sua filha apreciar a boemia e apreciou a criança crescida. Quando se chega em uma certa idade a nostalgia começa a gritar. Não era segredo que Mônica era sua favorita. A garota esquerdista, brilhante, volta e meia julgando o pai pela ditadura, que ia se casar assim que se formasse era a pérola daquele homem quase idoso. 
 No café da manhã, todos conversavam 
 - Vocês não acreditariam na cidade. Divina! - Falava sonhadora a irmã, aproveitando sua saída ao exterior. - Tudo parecia uma obra de arte. Cada Boulevard, cada rua, os milhares de cafés... Poesia pura.
 - E O cemitério do Père-Lachaise? Não consegui abandonar aquele lugar. 
 - Sabem o que dizem sobre Paris, certo? Quando se começa a passear em cemitérios, é hora de retornar ao Brasil. - Se intromete a caçula, ainda sonolenta.
 - Ana Miranda?
 - Fernando Gabeiros. 
 O timing perfeito para que a homenageada descesse a escada e sorrisse abobada. O pijama amassado e a cara de ressaca. Nem parecia ser um dia importante. Afinal, não era segredo que naquela noite, logo após a cerimonia ela esperava que Ricardo lhe pedisse em casamento. 
 - Não me lembro de ter lido isso em Quê que é isso Companheiro. - ela beija a caçula na testa. Não importa a idade, o amor entre essas três sempre será eterno. 
 - Hospede da Utopia. Recomendo, me acompanhou bem este outono. 
 E a rotina continua. O pai lê seu jornal e faz seus exercícios, cuida do jardim e toca piano com o amor de sua vida. Helena termina seus projetos e manda suas fotos para uma revista. Mônica toma seu banho e ensaia seu discurso enquanto Ricardo espera na sala com Denise. 
 O par conversava, uma conversa baixa, discreta com o intuito de não atrapalhar a música que vinha do outro lado do cômodo, porém animada. Denise sorrindo, Ricardo rindo e quem notasse, poderia perceber que suas mãos quase se tocavam. Mas ninguém notava. Não havia ninguém lá para notar, somente a consciência da garota, que (in)felizmente era estupenda. Em dois segundos o que era um riso divertido falando sobre um artigo que tentava publicar escondido, transformara-se numa expressão séria e cheia de remorso. 
 - O quê houve, Nise? - ela amava aquele apelido, em homenagem a nordestina. 
 - Você sabe o que houve. O que não houve e não haverá, especificamente falando. 
 - Odeio quando você começa a falar dramaticamente. Torna tudo pior, não fizemos nada. 
 - Falo assim porque falta poesia nesse mundo. - Ela ri. Cinicamente, nada mais convidativo para o infortuno de nosso convidado, pois ela era amável quando ria e estranhamente amarga quando ensaia. - A nossa geração vive de palavrões, vermelho, morte, sangue. Meias rasgadas e saias curtas. O que houve com o rosa? Tudo perdeu o valor, então sou romântica para retomar todo um mundo perdido. E somente não fizemos nada porque você vai pedir minha irmã em casamento.
 - Eu vou?
 - Ela e todos aqui em casa acreditam que sim. Melhor dar um jeito nisso. 
 - Não posso pedir ela em casamento. 
 - Se isso for por minha causa... Juro que nunca mais te vejo sozinha. 
 - Eu não disse nada disso. Ainda pode ficar sozinha comigo. 
 Então ela sobe as escadas, chamando pela talvez futura noiva. 
 - Moni! Preciso de carona! Vamos logo.
 E os passos descendo são a resposta, junto com um sorriso.
 - Sabe, me peguei pensando numa passagem hoje - ela sorri, beijando o namorado (ou beija o namorado sorrindo?) - Nós somos aquelas pessoas que cuidamos. Afinal, que seria de nós se não os nossos amores? - Ria a apaixonada. Tão bela, tão Cândida. Açucarada e afetuosa com o seu amor. Tomava-o pelo braço e sorria. 
 - E ela é uma pessoa melhor do que eu. - foi a resposta final de Denise, sussurrada para seu amante. Adversa a tudo,Mônica vai para o almoço.
 Helena escuta tudo o que houve da cozinha.

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