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(não) Vou me entorpecer bebendo vinho, seguindo só o meu caminho.

"Estou de volta"

 A letra curvilínea e redonda me afirmava com um certo quê de caçoamento ao lado do batom que se encontrava no formato de um beijo daquela boca. Daquela mulher.
 Um olhar de relance foi mais do que o suficiente para me lembrar daquela figura na forma de uma ampulheta sob a chuva. Os cabelos castanhos ondulados e um grande guarda chuva; o perfume de lavanda com algodão e a voz sempre maliciosa, não importando o que falasse, me convidando para aquelas pernas. As belas e famosas pernas de Jaqueline Vieira. 
 Para os políticos a filha do ministro, ou, dependendo da metade com quem falasse, a amante. Para a mãe, a filha da outra; para o pai uma arma; e para mim a filha da puta mais bonita que já vi. Enquanto vivíamos todos de jeans e sandálias, ela desfilava de saia e salto. No momento em que lutávamos contra a ditadura, ela se filiava a ARENA. Eu vivia de Tropicália e ela de bossa nova. Mas é claro que eu me apaixonaria por ela. 
 Amava os filmes, álbuns e o bom gosto que trazia de Londres. Conhecia tudo sobre tudo e todos; bela de corpo e tóxica em todo o resto. Muito provavelmente a chuva em que sempre a imaginei deveria ser ácida. Me viciei em um demônio e a pintava de noir para chamar de bonita o que era fatal.
 E vinte anos depois, o fantasma retorna.
 - Nunca pensei que você continuaria em Brasília.
 - Pois é, você acredita que a Asa Sul virou quadra de luxo? 
 Dois dias depois do bilhete e lá está. Conservada pelo Botox, lipoaspiração e cabelos loiros.
 - Odiei o que fez com os seus cabelos, se tivesse que disfarçar os brancos, pelo menos mantivesse a cor. 
 - É a moda, baby. 
 Baby, baby, baby. Odeio tanto isso. 
 - Me esqueci de como sempre esteve um passo a frente. E então? Vai me dizer que esperou Lula ser eleito para me dizer que me ama?
 Ela deu de ombros e pediu, sem delongas:
 - Preciso de abrigo.
 É claro. Eu me escondia dos militares na casa dela (quase me matava de rir da doce ironia de tudo aquilo) e ela dos pais dela na minha. Éramos um casal falho se não fosse por Chico, Billy Wilder, Hitchcock e Armstrong. Foram o suficiente até ela se mudar para os States em 87. Nova York, Boston e Washington lhe fizeram bem pra ela. Os sapatos de salto, maquiagem forte combinam com seu gosto por Johnny Cash.
 Vinte minutos depois e tomávamos nosso café da manhã. A mulher, antes garota de minha longuíssima vida de vinte anos, se deliciava com o suco de laranja natural e o pão francês com manteiga. Não se pode apenas viver de bagels, café e waffles. E obviamente, logo o olhar de "vou te interpretar e deixar-lhe intrigado" ataca. Apelidei carinhosamente de olhar da vadia. 
 Olhos focados, boca semicerrada e o indicador passeando sobre a boca do copo. Vinte anos, cento e duas cartas, um telefonema e três bilhetes depois e a piranha continua sendo a Iara de minha vida.
  - A idade lhe caiu bem. Sempre gostei de você com barba. 
 Instintivamente passei a mão no rosto, sorrindo.
 - Queria poder dizer o mesmo, mas você não parece ter sido afetada por esse fantasma. 
 - Oh, Marcos querido - ela ri - deve aprender que crescer e amadurecer são coisas boas. Ser vivido é bom. 
 - Temo que já amadureci o suficiente para três vidas. 
 - Indeed my love... - Ela suspira; e por meio segundo(ela não permite mais que isso) consigo realmente vê-la. Os olhos cansados, o rosto teso. Política a exauriu.
 - Vai fazer o quê?
 - Virar crítica. Literária, gastronômica, de cinema. Passar a vida sendo paga para falar mal. 
 E é claro que ela consegue. Uma mulher como ela tem seus contatos, porém ela além disso, tem talento. O resto da história já sabemos. Ela fica no quarto de meu filho e me ajuda com as contas. Tive o meu primeiro réveillon em Copacabana, com ela. Em questão de meses nos apaixonamos de novo, novamente. Diferente de quando jovens, não debatemos nem discutimos mais. Não somos idiotas de desperdiçarmos a última pessoa que pode nos amar nesse final de vida. Não debatemos mais política, cansamos desse aspecto (ela mais que eu, aparentemente). Mas, ficamos com medo de nos perder de novo, principalmente por um assunto tão frívolo; onde ser esquerdista e de direita não fazia mais diferença. Afinal, temos que construir o nosso felizes para sempre, um final desses não simplesmente brota, eu sei disso; ao contrário dela não troquei Marx por Austen. 


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