- Filha, está na hora de comer.
- Já vou indo, mamãe.
A mãe se retirou do quarto e foi preparar o prato da filha. A mesma expressão de sempre. Uma mistura de pena, raiva, frustração. Sempre isso. E então fez o prato da filha doente. Um pouco de arroz integral. Peito de frango desfiado. E salada. Ela precisava emagrecer.
A garota sentou-se. Olhou para o prato. Quis dizer algo, porém só olhou para baixo e começou a comer. Lentamente. Engoliu toda a salada, e comeu pouco arroz. Sabia que seria criticada se comesse muitos carboidratos. Subiu até o seu quarto e começou a escrever.
A filha ficou lá por algumas horas, até que então a mãe irritou-se, abriu a porta e falou para ela.
- Pare de escrever essas merdas! Saia de casa, vai correr! Você precisa emagrecer!
A garota nem teve tempo de responder. Deu de ombros, pôs o tênis e saiu a correr.
A mãe, já exausta de tanto trabalhar, arrumar casa, e fazer as compras, estava quase caindo de sono quando foi arrumar o quarto da filha. Fez a cama, passou pano, arrumou os livros. Viu o computador e deu de ombros, exasperada. Ela nem se quer cuidar de si mesmo, o fazia. Então deitou-se na cama da filha, e acabou dormindo. De tão exausta.
Quando acordou, já era noite.
- Júlia? Já está em casa?
O silêncio foi a resposta. Subiu as escadas, preocupada. Encontrou o marido, trabalhando.
- Viu a Júlia?
- Ela não está em casa?
Saiu a andar pelo bairro, procurando por ela. E a encontrou. Quieta, deitada no meio da rua. Ao se aproximar viu. Não somente o sangue do atropelamento, mas também lágrimas pelo rosto da garota.
No dia do enterro, ela não chorou. Sentia-se culpada. Aquela culpa enorme de não ter prestado atenção na filha. Mas se sentia culpada por sentir alívio. Aquele alívio dolorido. Como se algo faltasse para sempre, porém que ela teria mais tempo. Chegou em casa. Impassível. Entrou no quarto da filha, viu o caderno que ela tanto utilizava. Pôs-se a lê-lo. Na sétima página, já estava chorando. Abraçou o caderno. Deitou-se na mesma cama que havia deitado no dia anterior. E então chorou. Chorou mais alto que alguém já havia chorado. Não saia da cama. E uma única frase lhe martelava a cabeça, com aquela caligrafia terrível. Como uma escritora podia ter a caligrafia de um médico?
"Minha vida agora é uma sobrevivência; sem gosto.Sem exageros nem nada assim. Porém, ela está sorrindo. Ela está bem. Só me sinto mal por não ser o suficiente."
- Você é mais que suficiente minha criança. Você é tudo.
Chorou até pegar no sono. Sonhou com a filha. Mais gordinha do que era. Porém, ela estava feliz. Ambas estavam. Mais que tudo.
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